Denunciar o golpe de 1964 corresponde a dar um passo à frente na defesa da democracia, por definição um ente desarmado, pois em seu resguardo só se pode levantar a autoridade moral de um povo imbuído de consciência histórica.

A felonia do 1º de abril de 1964 pede reflexão.

Pede sempre, pois muito longe está de encerrar-se o inventário de seus malefícios, um dos quais nos malsina, a chaga do bolsonarismo, ainda ontem cantado em ode pelo general Villas Bôas.

O colapso da ditadura – assinalado com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, inaugurando uma “nova república” que já nascia velha – fechou um século marcado por irrupções sociais e intervenções militares, essas sempre levadas a cabo contra a democracia e a ordem constitucional, sempre a favor dos interesses da casa-grande.

Os grandes movimentos populares que levaram às cordas o mandarinato dos generais (as campanhas pela anistia e pelas “diretas já”) pareciam haver vacinado o país e seu povo contra os golpismos, as tomadas de mão, e semeado a esperança de um processo democrático resistente a toda sorte de abalos.

Seria o resultado de nosso aprendizado histórico após quantos anos de intranquilidade institucional e comoção social, ditaduras duradouras, decretações de estado de sítio, insurreições, quarteladas, deposições de presidentes e golpes de estado a granel.

Sem falar nas patacoadas dos brigadeiros de Jacareacanga e Aragarças.

O golpe de 1964 teve por objetivo, alcançado, impedir o aprofundamento do processo democrático, que avançava mediante a emergência das massas, e, na contramão dos interesses nacionais, deitar por terra nossos sonhos de soberania, subordinando, como fez o mandato do marechal Castello Branco, nossa política externa aos interesses do pentágono, isolando-nos no continente. Assim como, hoje, obra o governo do capitão.

Como toda tragédia política, essa última ditadura precisa ser eviscerada, exposta ao olhar e ao conhecimento de todos, para que não intente renovar-se, qualquer que seja o seu disfarce.

Porque muitas vezes cessa o estado de exceção, mas perdura, sobrevive, como traça, caruncho, o seu substrato ideológico, consumindo, invisível e silente, solerte, as bases do processo social.

Quando a peçonha emerge, vem à luz do dia e se apresenta em plenitude, já pouco há por fazer em defesa da democracia. Antes das armas, a barbárie conquista as almas, por isso muitas vezes sobrevive após a derrocada do poder de fato.

Passados tantos anos das experiências fascistas, vividas tantas guerras, revolucionadas as relações de produção, consagrada a democracia representativa, ressurge no ocidente, como planta daninha, o espectro ideológico da extrema-direita, que avança na Europa, avança nos EUA e daí se irradia, e chega até nós, com a aura do processo eleitoral de 2014.

O ovo da serpente anunciava desde 2013 a gestação da peçonha.

Da ameaça não cogitou a esquerda hegemônica.

Os liberais, e os autointitulados socialdemocratas viram na fragilidade teórica e prática da esquerda a oportunidade de, aliando-se ao diabo, alçar-se ao paraíso. O bolsonarismo é fruto de tudo isso.

O golpe militar, que ceifou a ordem democrática, derruiu o Estado constitucional, cerceou as liberdades, fechou o Congresso, impôs a censura, a tortura e o assassinato de patriotas, precisa ser lembrado, e nunca suficientemente condenado, para reforçar em todos os brasileiros a ojeriza, o repúdio, o ódio e o nojo a toda e qualquer alternativa autoritária de poder.

Os que não viveram aqueles dias tristes precisam conhecer sua crônica, e é lamentável que generais que não o viveram, mas deveriam estudar sua história, estejam, em funções públicas, defendendo o indefensável.

O que foram aqueles idos é o com que sonha o capitão, herdeiro saudosista do mais subterrâneo porão da ditadura. Como ele segue falante e perigosamente agindo – detê-lo é preciso e urgente –, é de crer que não esteja só. Maiores devem ser as precauções dos democratas.

Denunciar o golpe de 1964 corresponde a dar um passo à frente na defesa da democracia, por definição um ente desarmado, pois em seu resguardo só se pode levantar a autoridade moral de um povo imbuído de consciência histórica. E isto muito nos falta.

Se é preciso condenar o golpe militar e a ditadura que a ele se seguiu, sempre e em todas as oportunidades, sua celebração é ofensa constitucional e legal, transgride o pacto de 1988 de que resultou o processo redemocratizante que nos trouxe até aqui.

No entanto, no último 31 de março, o general ministro da defesa emitiu ordem do dia (subscrita também pelos comandantes das demais armas) na qual qualifica o golpe militar como “marco da democracia” e exalta seus presumidos feitos econômicos, o falso “milagre” da era delfiniana.

Que oficiais generais são esses que assim desrespeitam a Constituição e tergiversam sobre a verdade histórica?

A qual democracia se referem os comandantes?

À que fechou o Congresso, revogou a Constituição e editou atos institucionais para normatizar a repressão?

Àquela que matou mais de 400 brasileiros e torturou um número incontável de patriotas, em dependências do exército, da aeronáutica e da marinha?

Àquela que produziu a operação bandeirantes e o doi-codi e o tenebroso cenimar e instrumentalizou aberrações humanas como o delegado Fleury, o brigadeiro Burnier, o coronel Ustra e o capitão ainda presidente?

A democracia louvada pelos comandantes terá sido a casa dos horrores de Petrópolis, o quartel da polícia do exército da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro (onde foi torturado, empalado e assassinado Mário Alves), os desvãos da base aérea do Galeão, onde foi torturado e morto o menino Stuart Angel?

Ou aquela que assassinou Manuel Fiel Filho e Vladimir Herzog e até hoje não entregou a seus filhos o cadáver de Rubens Paiva e os de tantos e tantos outros?

O bolsonarismo é o chorume dessa saga indigesta.

A qual milagre econômico se referem os generais?

Àquele que concentrou renda, fez explodir a dívida externa (afinal saldada pelo governo Lula) e nos legou, em seu fim melancólico (presidido por aquele general que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo), uma inflação de 200% ao ano?

Quando os comandantes militares dão as costas à Constituição e se solidarizam com os crimes da ditadura, e quando o general Villas Bôas sai de seu repouso para elogiar seu rebento, como há dois dias, tornam-se todos – comprometendo a corporação e sujeitando-a ao severo julgamento da história, do qual não se livrarão –, igualmente, coniventes com o passado sombrio e abalizadores dos desmandos do capitão.

O qual segue ainda à solta, conspirando contra a saúde pública, cometendo atos que chegam às raias do genocídio, e sustentando a “pauta Guedes”, que desmonta a economia e o Estado nacional, cuja construção tanto deve a antigos militares cujas biografias não foram lidas (ou foram refugadas) pelos que o acaso fez seus sucessores.

A indisciplina dos generais de hoje diz muito da transição da ditadura para a democracia, assim como se operou entre nós, tão distintamente, por exemplo, do que ocorreu na Argentina e no Uruguai, onde crimes foram apurados e responsabilidades punidas.

Como entre nós não houve ruptura, a transição da ditadura para a democracia se deu sob o comando do regime esgotado, que ditou as regras do jogo, e, assim, o regime militar, decaído mas não deposto, sobreviveu na Nova República, curatelando a democracia permitida.

A concordata, traficada entre generais e um grupo de príncipes autonomeados representantes de um povo que não era ouvido, chegou mesmo a estabelecer os termos da convocação constituinte e seus limites, que afinal foram respeitados, como foi respeitado pelos constituintes o compromisso de não alterar a lei de anistia ditada ainda na ditadura e segundo seus interesses, e a garantia de que os crimes militares não seriam apurados nem punidos, como não foram.

Os militares se mantiveram como um casulo, à parte, vivendo sua própria história e sua própria “verdade”, longe da sociedade e da vida real, impermeáveis ao processo social, autônomos e autárquicos. Se haviam recolhido à caserna e ao silêncio constitucional que lhes é imposto em face da força que monopolizam.

O cenário de hoje, porém, é diverso e grave, na medida em que os militares correm o risco de se confundirem com o atual governo e o projeto do bolsonarismo.

Mais que nunca, precisamos repelir com veemência manifestações grotescas e irresponsáveis daqueles que não honram a farda que vestem.

Vermelho