Thiago Gonçalves Coriolano

Ainda que se diga que a percepção sobre o setor bancário deve ser reformada, pesquisadores alertam para o fato de que o ambiente bancário ainda é um dos locais que mais causam danos à saúde do trabalhador.

  

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Introdução

Foi editada em novembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro a medida provisória 905 (MP 905/19). Entre as alterações legislativas provisórias instituídas, destaca-se a criação do contrato verde amarelo que permite a contratação de trabalhadores entre 18 a 29 anos que estão no mercado de trabalho em busca do primeiro emprego, podendo receber em contraprestação ao labor realizado o pagamento de até um salário mínimo e meio que, embora mereça críticas, não teceremos comentários neste artigo. Porém, dentre as tantas mudanças que a norma instituiu, o que chama a atenção é a inovação legislativa permissiva a ampliação da jornada de trabalho do bancário.

Atualmente, a MP 905/19 é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) em sede de controle concentrado de constitucionalidade, por meio de quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn 6261, 6265 6285 e 6267), todas de relatoria da Ministra Carmem Lúcia. O fundamento central das ações diretas de inconstitucionalidade é a ausência da demonstração de urgência e relevância por parte do Poder Executivo para a edição da MP, assim como o tratamento de matérias reservadas à lei complementar em sede de medida provisória.

Desde a apresentação da MP ao parlamento, foram editadas 1.930 emendas, o que denota a ausência de sintonia entres os Poderes e representa um risco veicular alterações significativas às relações de trabalho de forma unilateral, o que fomenta um novo sucedâneo à criação de insegurança jurídica tanto às empresas, quanto aos trabalhadores, a exemplo do que ocorreu após o exaurimento da vigência da MP 808/17.

Neste artigo analisaremos os impactos da MP 905/19 na categoria dos trabalhadores bancários e a sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico vigente, ainda que a realidade fática se demonstre muito mais complexa e adaptável ao interesses políticos e econômicos – sobretudo em se tratando das instituições bancárias – que desafiam a todo o momento a estrutura jurídica básica de respeito aos princípios e normas constitucionais.

A supressão de direitos históricos conquistados pela categoria dos bancários e a promoção ao retrocesso social

O capítulo V da MP 905/19 é de grande interesse para a análise do presente trabalho, pois esta segue a receita legislativa de impor uma norma cheia de retalhos e assunto díspares, para normatizar diversos assuntos por “debaixo dos panos” e sem qualquer debate. A aludida MP, por exemplo, trata do contrato verde e amarelo, contribuições sociais, estímulos ao microcrédito, reedita a questão dos juros de mora dos débitos trabalhistas nos processos judiciais trabalhistas e, por fim - para espanto de qualquer estudioso do tema -, define a forma como as informações relativas às relações de trabalho podem ser armazenadas.

É nesse contexto que se verifica que a ADIn 6.285 não possui os requisitos da urgência e da relevância, previstos na Constituição Federal (art. 62). A edição de uma medida provisória nesses termos mostra-se como uma tentativa do Poder Executivo de impor um pacote de reformas sem debate popular prévio ou, no mínimo, das camadas interessadas, como se espera em um regime democrático.

Assim, sorrateiramente e pouco noticiada, a MP 905/19 modificou o art. 224 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e autorizou às instituições bancárias a aumentarem a jornada do bancário para 8 horas diárias, além de ampliar o atendimento dos bancos aos sábados. Tal medida se aplica inteiramente aos novos contratos e aos antigos contratos exige-se a pactuação de acordo individual.

A MP, contudo, excluiu da alteração da carga horária – a princípio – os bancários que trabalham exclusivamente nos caixas, sem que isso implique na impossibilidade de pactuação, entre as instituições bancárias e os aludidos trabalhadores, o aumento da jornada de trabalho por meio de acordo individual.

De início, é preciso esclarecer que qualquer modificação legislativa que implique na alteração de um regime de trabalho já conquistado pelo trabalhador necessita de uma ampla discussão social, até mesmo porque existem diversas barreiras legislativas e principiológicas nas relações de trabalho que impedem a alteração do contrato de trabalho, caso essas se mostrem prejudiciais ao trabalhador.

Nesse sentido, a conquista da carga horária de 6 horas diárias de trabalho para a categoria ocorreu no século passado, para os então economiários da Caixa Econômica Federal, resultado de um movimento grevista que mobilizou funcionários da estatal de todo o país por 24 horas, em 30 de outubro de 1985. Portanto, ainda que se diga que a jornada especial aplicada aos bancários possa revelar uma quebra da isonomia frente às outras categorias de trabalho, é certo que a jornada especial é resultado da luta da classe bancária e revela circunstâncias próprias da categoria. Portanto, as pressões do lobby empresarial afunilam a organização definida pelos próprios trabalhadores, em um cenário de progressivo enfraquecimento das entidades sindicais, o auxílio do Governo à derrocada e promoção ao retrocesso da conquista categoria, não parece no mínimo justo.

Historicamente, a rotina reduzida da categoria dos bancários foi definida para diminuir o estresse que o trabalho acarretava.

Ainda que se diga que a percepção sobre o setor bancário deve ser reformada, pesquisadores alertam para o fato de que o ambiente bancário ainda é um dos locais que mais causam danos à saúde do trabalhador. Como resultado disso, os trabalhadores dessa categoria estão propensos a desenvolverem doenças relacionados a sobrecarga de trabalho, como burnout e tendinites resultantes de movimentos repetitivos1.

A ampliação da jornada vai na contramão da proteção progressiva que se espera dos direitos sociais do trabalho como política pública da Administração Pública, conforme prevê o art. 7º da Constituição “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social [...]” e representa uma afronta ao princípio da vedação ao retrocesso social, diante da modificação contratual extintiva em relação a uma garantia trabalhista já conquistada.

A autorização deliberada para simular negociatas individuais para aumento da jornada de trabalho

Outro ponto que chama atenção na norma, refere-se à forma como as instituições bancárias deverão negociar o aumento da jornada de trabalho com o empregado – quando não se tratar de novas contratações –, a qual se dará por meio de acordo individual de trabalho.

Embora os caixas tenham sido poupados do aumento da jornada a princípio, o governo permitiu que os bancos “acordem” o aumento individualmente. Na prática, os acordos individuais funcionam como um mecanismo para as empresas imporem seus regimes organizacionais ao funcionário “de acordo com a lei”, funcionando como verdadeiros contratos de adesão e condição para manutenção dos empregos.

Dada a aplicação imediata aos novos contratos, valerá mais à pena, para os bancos, romperam os contratos atuais – pois ainda que as imposições sejam por adesão, resta aos bancários o direito de “resistir” aos acordos para aumento de jornada - e realizarem novas contratações sob o novo regime instituído provisoriamente.

Por fim, em meio a todo esse imbróglio, ainda há o risco de o parlamento não ratificar a MP 905, ocasionando um novo limbo jurídico, à semelhança do que ocorreu após o exaurimento da vigência da MP 878. Com o sindicato da categoria enfraquecido e a Federação Nacional dos Bancos (Fenabam) comparando a MP a “um marco regulatório na história dos bancos”, dificilmente a voz dos bancários será ouvida.

Legalização da fraude histórica do trabalho bancário realizado após a 8ª hora diária

Outro ponto que chama atenção e que há anos tem sido objeto de forte de recente militância judicial da advocacia, consiste na autorização para a compensação do valor das horas extras não pagas com as gratificações pagas em razão da ocupação de “cargos de confiança”, quando houver o reconhecimento da ilegalidade no judiciário das fraudes históricas e de conhecimento popular dos chamados “gerente sem mando”. O que até então era pacífico pela Justiça do Trabalho, acerca da a ilegalidade e combatido fortemente pelos Juízes, representada principalmente pela súmula 109 do Tribunal Superior do Trabalho, passou a ser estimulado pela MP.

Com a modificação inserida pela MP, o bancário só terá direito ao pagamento da hora extraordinária a partir da 8ª hora de trabalho.

O planalto buscou legitimar a situação de gerentes sem poderes de mando que trabalham 8 horas diárias há muito tempo nos bancos, em infringência a legislação vigente até então.

Contudo, o cenário de ilegalidade já havia sido chancelado pelas representações sindicais da categoria a partir da última convenção coletiva (clausula 11ª), editada com vigência até este ano.

A mesma cláusula limitou o direito do trabalhador bancário de pleitear o reconhecimento da ilegalidade até 01 de dezembro de 2018, hipótese em que o bancário faria jus aos pagamentos das horas extras suprimidas com a inclusão da compensação dos valores pagos a título de gratificação de função. Após, a aludida data o valor devido relativo às horas extras e reflexos passou a ser integralmente deduzido/compensado, com o valor da gratificação de função e reflexos pagos ao empregado.

Nota-se a total dissonância do entendimento que já estava consolidado na jurisprudência pátria, construída com base em uma série de julgamentos e experiência sociais, em uma tentativa clara de privilegiar o enriquecimento sem causa das instituições bancárias em detrimento de direitos sociais dos bancários.

Possibilidade de aumento das doenças atreladas à categoria

A CLT prevê jornadas de trabalho especiais à determinadas categorias, com o fito de proteger o trabalhador das nocividades do labor realizado em algumas atividades.

Em pesquisas voltadas à análise das doenças geradas no ambiente de trabalho o que se destaca nos estudos é que os bancários são afetados pela jornada de trabalho em razão das modificações ocorridas no ambiente de trabalho, sobretudo, em decorrência da mecanização dos procedimentos e ampliação dos atendimento em terminais na internet, aplicativos de celulares etc. Essas transformações constantes aumentam as pressões e estresse do trabalhador bancário, principalmente pela ameaça de demissões em massa, propagadas pelo aumento da automação dos procedimentos.

As constantes modificações nas tarefas bancárias “trouxeram consequências importantes para a saúde dos bancários, principalmente em relação as condições de trabalho que propiciam o aumento de doenças como as LER/Dort” decorrente de movimentos repetitivos2.

Conforme levantamento realizado pelo Sindicato dos Bancários e financiários de São Paulo, Osasco e região junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) demonstrou que 2009 à 2017 a quantidade de trabalhadores de bancos afastados por transtornos mentais cresceu 61,5%, e o total de afastados aumentou 30% e o número absoluto de trabalhadores adoecidos pode ser ainda maior devido à subnotificação.

Nesse sentido, veja-se que ainda que os bancos respondem por apenas 1% dos empregos no Brasil, foram os responsáveis por 5% do total de afastamentos por doença no país, entre 2012 e 2017. É neste cenário que o governo decide ampliar as jornadas de trabalho e massifica ainda mais os flagelos contra a categoria.

É necessário pressão popular para findar essas ações do Poder Público contra a classe trabalhadora, nas palavras de Orwell (1984, p.156) “se há esperança, escreveu Winston, está nos proletas [...] enquanto eles não se conscientizarem, não serão rebeldes autênticos e, enquanto não se rebelarem, não têm como se conscientizar”.

Considerações finais

Em que pese haver notoriedade das ações ilegais dos bancos contra os trabalhadores, o governo fez frente para contrariar uma conquista social da própria categoria, em um movimento retórico de retrocesso social.

Aos bancários resta aguardarem as movimentações do setor bancário após a edição dessa norma. Com a possibilidade de demissões plúrimas sem a conivência do Sindicato, espera-se uma larga demissão em massa para formalizar novos contratos aos moldes da medida provisória.

A conclusão terrível que se chega é que mais uma vez valeu a pena fraudar diretos sociais no Brasil.

É mais uma vitória do capital.

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1 MARQUES, Gabriela da Silva e GIONGO, Carmem Regina. Trabalhadores bancários em sofrimento: uma análise da literatura nacional. Rev. Psicol., Organ. Trab. [online]. 2016, vol.16, n.3, p. 220-247. Disponível em: Clique aqui. ISSN 1984-6657. Clique aqui.

2 JINKINGS, Nise. As formas contemporâneas da exploração do trabalho nos bancos. In: Antunes R, Silva MAM, organizadores. O avesso do trabalho. São Paulo: Expressão Popular; 2004. p. 207-41.

DRUCK, Graça. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. Cad. CRH [online]. 2007, vol.20, n.51, p. 529-530. Disponível em: Clique aqui. ISSN 0103-4979.  Clique aqui.

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*Thiago Gonçalves Coriolano é pós-graduando em direito material e processual do trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em direito pela Universidade São Judas Tadeu. Criador e editor do blog “diga Coriolano”. Sócio do escritório Pires e Coriolanos Sociedade de Advogados.

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