OPINIÃO

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No último dia 5, comemorou-se 31 anos da Constituição da República e um mês da publicação da Nova Lei de Abuso de Autoridade. Esta tem sido objeto de polêmicas desde sua origem e o projeto que finalmente frutificou foi o apresentado em 2016 pelo Senador Renan Calheiros.

Este tema levanta dois antigos debates: um acerca dos excessos cometidos por autoridades; outro, sobre as investidas sofridas pelas operações de combate aos crimes de alta classe.

Lembre-se que o referido Senador foi o primeiro presidente do Senado a tornar-se réu e foi alvo de 11 inquéritos perante o STF[1], dos quais 08 são relativos à Lava Jato.

Ao longo dos 03 anos de processo legislativo, o tema foi intensamente discutido no Congresso Nacional e pela imprensa, embora muitos ponderavam não ser este o momento adequado para se aprovar uma lei como esta.

Aliás, a derrubada do veto mostra o tom anacrônico escolhido para fazer nascer uma lei como esta. Alguns apontam que a extensão desta derrubada se deu como reação ao deferimento de buscas e apreensões nos gabinetes do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, e de seu filho, o deputado Fernando Filho, ambos investigados por corrupção.

O Presidente da República telefonara para o presidente do Senado, e teria dado o aval para que o Congresso derrubasse parte dos vetos. O Presidente vetara 33 dos dispositivos da proposta.[2] Por sua vez a Câmara dos Deputados e o Senado Federal derrubou 18 dos vetos.

Por outro lado, não se pode olvidar que o Supremo Tribunal Federal, por 7 votos a 3, no último dia 26, acatou tese que pode vir a anular várias condenações. O Plenário decidiu que o réu tem direito de apresentar alegações finais depois dos colaboradores, apesar do CPP e a Lei de regência não disporem expressamente acerca da matéria.

A decisão veio de encontro à ponderação do Ministro Roberto Barroso, o qual vê a tentativa de anulação como um esforço para se barrar as investigações:

Não é natural desviar dinheiro, nós precisamos romper esse paradigma. Garantismo significa direito de saber sobre o que é acusado, direito de apresentar defesa, direito de produzir provas, direito de ser julgado por um juiz imparcial. Garantismo não significa direito a um processo que não funcione, que não acabe, que sempre produza prescrição (grifamos), afirmou o Ministro[3].

O reconhecimento desta nulidade talvez seja o mais profundo flanco aberto contra a Lava Jato. Mas voltemos à Lei de abuso de autoridade.

A Lava Jato conseguiu números expressivos no combate aos crimes de alta classe, como Lavagem de Dinheiro, Corrupção, Organização Criminosa, etc. Foram 244 condenações contra 159 pessoas, somando mais de 2.249 anos de prisão.[4]

De outra banda, desde 1940, o Professor da Universidade de Indiana, EUA, Edwin Sutherland, sociólogo e economista político e o primeiro a cunhar a expressão “crime de colarinho branco”, em seu famoso artigo “Criminalidade do Colarinho Branco”, já apontava a diferença de tratamento dado os criminosos de alto escalão. Ele dissertou como a condenação neste tipo de crime é evitada em função da pressão exercida sobre os Tribunais[5].

Sutherland salientou como os criminosos de alta classe tem se mantido imunes por conta da pressão exercida sobre potenciais testemunhas e agentes públicos. Afirmou que passam ao largo das condenações e mesmo dos processos criminais por conta do viés de classes dos Tribunais e do poder de influenciar a implementação e administração do Direito[6].

Todavia, como disse Edmund Burke, membro do parlamento londrino do Século XVIII e um dos maiores oradores da história de seu país, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

Assim o Povo brasileiro, em vez de se deixar iludir pela política do pão e circo (redes sociais, futebol, carnaval etc), deveria beber-se na história das Mãos Limpas, operação italiana ocorrida na década de 1990, que inspirou a Lava Jato.

O Procurador de Justiça do Paraná Rodrigo Chemim como poucos sintetiza e compara ambas operações.[7] Ele classifica as respostas ao combate à corrupção em reações: a) suicidas e homicidas; b) jurídicas; c) violentas; d) políticas; e) legislativas e f) contra os investigadores.

Sumariemos a sua síntese.

a) Na Itália, apesar das contradições e polêmicas, há quem narre que entre 1992 e 1994 houve 31 suicídios. No Brasil, tentaram-se 02, ambos sem êxito. Na Itália, indícios apontam que supostos suicídios em verdade foram homicídios. Como no caso de Sergio Castellari e Raul Gardini que morreram no dia que iriam depor e Gabriele Cagliari, na antevéspera[8].

b) Das reações jurídicas pode ser ressaltado o ataque às prisões cautelares rotulando-as de abusivas e tentando vinculá-las à pretensão de chegar-se a acordo de colaboração premiada.

Houve quem comparasse a colaboração premiada de presos às torturas ocorridas nas ditaduras fascista ou militar ou até mesmo ao tratamento recebido em Guantánamo pelos acusados de terrorismo.

c) Das reações violentas, pode-se citar ameaças contra a vida dos investigadores da Mãos Limpas e seus familiares, como ocorreu com o plano de matar Antonio Di Pietro. Tal projeto teria contado inclusive com personagens próximos a Silvio Berlusconi, como Cesare Previti, ex-ministro de Defesa e o banqueiro ítalo suíco Pierfrancesco Battaglia.

No Brasil, o então Procurador-Geral da República Rodrigo Janot e o então Juiz Sérgio Moro foram ameaçados. O primeiro teve sua casa invadida, e inúmeros objetos de valor, inclusive armas, não foram subtraídos. Apenas o controle de sua garagem foi levado.

Não se pode desprezar também a morte do ex-prefeito de Santo André-SP Celso Daniel do PT e a ameaça sofrida pela advogada Catta Preta.[9]

d) A reação política consistiu em dois eixos. O primeiro foi generalizar a corrupção, como hábito de todos os políticos e todos os partidos. Se todos fazem a mesma coisa, todos salvam-se.

Bettino Craxi, em 3 julho de 1992, num estudado rompante de sinceridade, num famoso discurso na Câmara de Deputados, vaticinou:

À sombra do financiamento irregular dos partidos e do sistema político florescem e se entrelaçam casos de corrupção e de extorsão que devem ser definidos, provados e julgados como tais. No entanto, precisamos dizer aquilo que todos sabemos: boa parte do financiamento público é irregular ou ilegal e nenhum partido é capaz de atirar a primeira pedra.

A segunda linha da reação política foi a tentativa de atrelar a atuação dos que combatem a corrupção a uma corrente político-ideológica.

No caso Italiano, a tese da atuação política foi afastada pela Corte Europeia dos Direitos Humanos no caso nº 63226/2000[10].

e) Na Itália, depois da aceitação das críticas contra a Magistratura, abriu-se caminho para as reações legislativas, as quais vieram a beneficiar os corruptos. Somente as alterações na legislação daria ensejo a um artigo específico ou mesmo a capítulo de uma obra, já que o Parlamento é o coração da República. Mas sejamos sintéticos.

Em 1992, foram propostas reformas constitucionais que visavam desvincular o Ministério Público italiano da Magistratura, como uma franca tentativa de subordiná-lo ao Poder Executivo ou até mesmo ao Legislativo.

À guisa histórico cabe a lembrança que Benito Mussolini em 1925 chegou a estabelecer a inscrição no Partido Nacional Fascista como pré-requisito para ingressar na Magistratura ou no Ministério Público. Assim, ele manipulava as instituições de acordo com seus propósitos.

Por outro lado, o Decreto-lei nº 440/1994 ficou conhecido como “Decreto Salva-Ladrões” ou “Decreto Biondi”, em referência ao seu autor, Alfredo Biondi, Ministro da Justiça do governo Berslusconi. Tal diploma proibiu a prisão preventiva para crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, admitindo tão somente a prisão domiciliar.

Além disto, o referido Decreto-Lei diminuíra o tempo para instrução probatória e proibira a divulgação de investigações pela imprensa. O pai da ideia 20 anos depois ainda argumentava que a prisão cautelar estava sendo utilizada para “forçar delações premiadas”.

À guisa de exemplo das diversas alterações legislativas citemos outra.

Como muitos políticos importantes corriam o risco de ser condenados, o Parlamento italiano alterou as regras de produção de prova, alterando o art. 513 do Código de Processo Penal. Revogou-se a autorização de utilizar-se provas colhidas unilateralmente no inquérito, proibindo o seu uso sem a autorização do investigado, sendo necessário repeti-la sob o crivo do contraditório[11].

f) Por fim, as reações contra os investigadores envolvem representações forjando acusações inventadas. Por exemplo, Di Pietro depois de 02 anos de Mãos Limpas, viu-se obrigado a abandonar a Magistratura e passou 04 anos defendendo-se das acusações caluniosas[12].

Feitas tais ponderações percebe-se que a Lava Jato e Mãos Limpas possuem muito mais semelhanças do que simples coincidências, apesar das distinções de épocas e de como o Mundo transformou-se neste intervalo de mais de duas décadas.

Nesta senda, apesar de eventualmente possuir algum mérito, percebe-se que a Nova Lei de Abuso de Autoridade poderá ser usada como freio no processo de combate à corrupção.

Com certeza da mesma forma como ocorreu em relação ao pool de Milão, esta e outras reações dos investigados não deverão intimidar à força tarefa da Lava Jato e nem conter o movimento contra corrupção.

Em verdade, o desenho do atual movimento de combate à corrupção foi inaugurado com o Mensalão, o qual descoberto em 2005, teve a denúncia recebida em 2007 e foi julgado pelo STF em 2012.

Por fim, a atual sociedade da informação faz os dados circularem em diversos canais e numa velocidade estonteante. Assim, o combate ao crime de alto escalão não cessará no Brasil, pois é um movimento maduro e que sempre ganhará adesão das novas gerações.

Em verdade, apoiar o combate aos crimes de colarinho branco trata-se de um dever de toda sociedade. Pois como leciona Rudolf Von Ihering desde a primavera de 1872[13]:

O povo que não reage, quando o vizinho lhe furta uma milha quadrada de terra, verá que, em breve, toda a terra lhe será arrebatada e, assim, quando nada mais tiver a perder, terá deixado de existir como Estado – e um tal povo não merece mesmo melhor destino. (...)

Uma voz interior lhe diz que não pode recuar, que para ele não está em jogo o objeto, aliás sem valor, mas a sua personalidade, honra, sentido de justiça, amor próprio, ou, em resumo, o processo deixa de ser mera questão de interesse para transformar-se em questão de caráter, pois está em jogo a afirmação ou renúncia da sua própria personalidade. (...)

a resistência contra a lesão ao nosso direito, que ofenda a nossa personalidade, ou seja, contra a violação do direito que assuma o caráter de desprezo consciente desse mesmo direito, de uma ofensa pessoal, constitui um dever, dever do interessado para consigo mesmo, pois representa um imperativo de autodefesa moral, dever para com a sociedade, porque somente mediante tal resistência é que o direito se realiza.

Mantendo-se informado sobre os fatos que circundam os reais valores da República, tomara que o povo se conserve vígil.

Oxalá que o movimento contra corrupção mantenha-se avante, respeitando o devido processo legal e a ampla defesa.


[1] Oito dizem respeito à Operação Lava-Jato, um à Zelotes, um a supostos desvios em Belo Monte e outro sobre o caso Monica Veloso, tudo conforme informações de https://oglobo.globo.com/brasil/os-inqueritos-contra-renan-calheiros-20645846, acessado em 29.09.2019.

[2] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-deu-aval-para-a-derrubada-de-vetos-da-lei-de-abuso-de-autoridade,70003025901, acessado em 28.09.2019.

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-09/stf-vota-favor-de-tese-que-pode-anular-condenacoes-da-lava-jato, acessado em 29.09.2019.

[4] http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/parana/resultado, acessado em 29.9.2019.

[5]This difference in the implementation of the criminal law is due principally to the difference in the social position of the two types of offenders. Judge Woodward, when imposing sentence upon the officials of the H. 0. Stone and Company, bankrupt real estate firm in Chicago, who had been convicted in I933 of the use of the mails to defraud, said to them"You are men of affairs, of experience, of refinement and culture, of excellent reputation and standing in the business and social world." That statement might be used as a general characterization of white-collar criminals for they are oriented basically to legitimate and respectable careers. Because of their social status they have a loud voice in determining what goes into the statutes and how the criminal law as it affects themselves is implemented and administered. [...] Finally, the Administration has not been able to enforce the law as it has desired because of the pressures by the offenders against the law, sometimes brought to bear through the head of the Department of Agriculture, sometimes through congressmen who threaten cuts in the appropriation, and sometimes by others. The statement of Daniel Drew, a pious old fraud, describes the criminal law with some accuracy, "Law is like a cobweb; it's made for flies and the smaller kinds of insects, so to speak, but lets the big bumblebees break throughWhen technicalities of the law stood in my way, I have always been able to brush them aside easy as anything."

(...) The preceding analysis should be regarded neither as an assertion that all efforts to influence legislation and its administration are reprehensible nor as a particularistic interpretation of the criminal law. It means only that the upper class has greater influence in moulding the criminal law and its administration to its own interests than does the lower class. The privileged position of white-collar criminals before the law results to a slight extent from bribery and political pressures, principally from the respect in which they are held and without special effort on their part. The most powerful group in medieval society secured relative immunity by "benefit of clergy," and now our most powerful groups secure relative immunity by "benefit of business or profession."

6] No original: Similarly, white-collar criminals are relatively immune because of the class bias of the courts and the power of their class to influence the implementation and administration of the law.

[7] Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho. – Porto Alegre: CDG, 2017.

[8] Idem, p. 123/136.

[9] Idem, p. 148/151.

[10] Idem, p. 151/162.

[11] Idem, p. 163/201.

[12] Idem, p. 202/205.

[13] A Luta pelo Direito; tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella – 8ª Edição – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 51/53. 

 é Juiz de Direito Titular da 1ª Vara de Lago da Pedra, no Maranhão. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador e especialista em Direito do Estado pelo Curso Juspodivm e Instituto de Educação Superior Unyahna. Foi Juiz Titular da 74ª Zona Eleitoral/Ma.

Rosa Maria Seba Salomão é especialista em Direito Público. Técnica Judiciário do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Revista Consultor Jurídico