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Dona Maria Nicolas mora no Portão

A Primeira professora negra do Paraná 


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O economista Antônio Carlos Zotto, 67 anos (foto), era já um homem feito quando se deu conta de que sua avó – Maria Nicolas – merecia um monumento em praça pública. A filha Lucila teve de fazer um trabalho de escola sobre “antepassados”. Perguntou em casa sobre os seus. Foi o que bastou para que Antônio tirasse Maria do lugar secreto onde a tinha guardado, sabe-se lá por quê. Desfiou para a filha um rosário de proezas, fazendo da lição de casa da pequena um elogio para todo o sempre.

A partir daquele dia, tornou-se guardião de Maria Nicolas. Passou a garimpar os livros da avó – mais de 30 títulos. Somou os muitos, muitos diplomas e certificados que ela conquistou, da Accademia Universal Inventori Autori, de Roma, ao de sócia do Instituto Histórico de Sergipe. Em paralelo ao acervo, começou a escrever uma espécie de “carta aberta”, na qual reconstitui os passos da parenta. Na residência do Portão, onde Zotto mora, dona Maria não só está viva como passa muito bem.

Maria Nicolas é um desses enigmas da pirâmide. Pede para ser decifrada. Nasceu na capital, em 1899, filha de um imigrante francês – o baixinho Leon Nicolas (leia-se “Nicolá”) e da brasileiríssima Josepha. Leon ganhava o pão como zelador do Teatro Guaíra. Afirma-se que foi ali – nas coxias – que sua menina se decidiu pela cultura, sem prever o duro que teria de dar.

Começou a lecionar ainda adolescente, aos 13. Aos 17, formou-se na Escola Normal e rápido se tornou próxima da decana do magistério do Paraná Antigo, Júlia Wanderley. Ensinou pencas de gente. Tudo isso não passaria de memórias de uma moça bem comportada, não fosse Maria Nicolas pobre, negra, espírita, separada ... e boa de briga.

Difícil não se perguntar como foi que conseguiu se impor, a ponto de arrancar inflamados panegíricos. É tocante o relato de que o ex-prefeito Ivo Arzua chora nas exéquias da professora que lhe apresentou às letras. O jornalista Aramis Millarch devotou a ela linhas e linhas, nas quais a admiração transborda o número de caracteres permitidos na imprensa. Tudo isso sem que ninguém use palavras meladas para qualificá-la. O próprio neto, Antônio Carlos, passou por uma madureza antes de dobrá-la.

Uma das hipóteses é de que Maria Nicolas ganhou a parada, e calou bicos, graças a seu talento indisfarçável. Era uma espécie de Didi Caillet sem berço de ouro. Escreveu poesia, crônica, romance, teatro, conto, biografias, literatura infantil, livros didáticos. Praticou a historiografia, com luvas de pelica, pesquisando quem não mediria esforços para varrê-la para debaixo do tapete. Mais. Fez tudo isso apenas com o que aprendeu no magistério. Faculdade, mesmo, só cursou quando beirava os 50 anos. Sua foto de formatura em Pedagogia na UFPR, em 1950, tem ares de esfinge: os cabelos brancos saltam da beca preta, testemunho de seu topete, e de seu peito. Escritora com tiques de atriz, brindava sempre com um jogo de cena. Assim permanece. Experimente.

É no mínimo curioso ler suas novelas cor-de-rosa, escritas na década de 1930, não raro pontificadas por mocinhas feias, sofredoras e proletárias, aprisionadas à sanha de uma mãe inválida. Nem as mártires das novelas de rádio enfrentavam tamanha tortura quanto as de Tornamos a viver Amor que redime. Passada essa fase, conquistou mais do que a afeição das jovens leitoras com taquicardia amorosa, conquistou todo o resto da paróquia.

Duvida? Pois pergunte a alguém “das antigas” sobre Alma das ruas (1969). Depois, chupe o dedo. É uma série com pequenas biografias dos excelsos que dão nome às vias locais. Os testemunhos sobre como conseguia tantas informações – sem o socorro da internet e em bibliotecas que deviam lhe atiçar a rinite – vale o show: ia de ônibus ou a pé, carregando pencas de anotações em bloquinhos que saltavam da bolsa. Nos meus primeiros anos de jornalismo, bem lembro, Alma... tinha lugar na redação ao lado do Aurélio.

Diz-se que a última trincheira que venceu foi a pintura. De acordo com registro da jornalista Maí Nascimento, Nicolas teria ouvido que a mão de carroceira impedia o avanço nas artes. Magoou. Pois coitado, o troco veio a jato: dedicou-se como uma monja à pintura ingênua, fazendo do estilo um verdadeiro refresco – para o público e para ela, que teve de trabalhar pesado, sempre mostrando a que veio. Barra, né.

Num deslize, já vovozinha, deixou escapar ao neto Antônio o que lhe faltava fazer àquela altura: adoraria voltar à escola e ganhar uma turma de alfabetização. Levava jeito para ensinar. Morreu aos 87 anos, em junho de 1988, ano de centenário da Abolição da Escravatura. Morava de aluguel.


Fonte: Gazeta do Povo, 05 de junho de 2014


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