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O conflito feminino de papéis e a velhice

Leia na íntegra: 

“Dos 28 aos 35 anos, eu vivia em três níveis: uma mãe feliz de coração; uma esposa buscando compreensão; uma individualidade buscando a si mesma.” (B.S., aos 73 anos, em depoimento a Gudrun Burkhard)

Destaquei esse depoimento para iniciar a longa história de B.S. porque vejo muita mulher que se perde de si mesma nesse primeiro “triângulo das Bermudas” da vida.

A mãe e esposa geralmente seguem na inércia da dedicação aos vínculos afetivos, alienando-se da compreensão (que esperam do marido e poucas conseguem verbalizar) e da “individualidade”, que exige expressão na personalidade e na vida.

O ideal, em termos de saúde da mulher, seria uma atuação preventiva, um esforço maior de solucionar divisões internas, quase sempre agravadas no processo de envelhecimento.

Mas a jovem alemã, B.S. opta por viver “inteiramente em função das crianças” dos 35 aos 42 anos, já que chega um terceiro filho nesse período.

A sua biografia me interessou particularmente, entre tantas biografias de idosos que tenho estudado, porque a sensibilidade de saber que lhe “faltava algo” nunca a abandonou; apesar disso, sempre cumpriu com muita energia e alegria todas as tarefas que assumiu.

Aos 55 anos, já avó do primeiro neto, reformou a casa dos pais (o pai já havia morrido; a mãe, com Alzheimer, estava bem instalada em um lar antroposófico) para acomodar o consultório do marido e uma escola infantil. O corpo reclamou, conforme relata:

“Em 1980, tivemos que mandar reformar mais uma vez a casa de meus pais. (...) Eu tinha de transmitir aos operários os desejos de meu marido, os quais só iam se completando durante a construção. Isso me custou tanto esforço que depois da inauguração tive um colapso. Uma infecção generalizada perigosa desenvolveu-se depois de uma tentativa malsucedida de sanar a mandíbula; por muitas semanas fiquei fora de casa.”


Poesia e desenho

Curou-se com a ajuda de poesias especiais, enviadas por sua filha, e do tratamento com desenho e euritmia terapêutica prescrito por uma médica antroposófica.

B.S., filha de médico, testemunha dos horrores da II Guerra Mundial e extremamente sensível a respeito de si mesma, declarou algumas vezes na sua biografia que ficava doente “quando saía do seu ritmo”, adotando o do outro.

Ao buscar o ritmo próprio, recuperava a harmonia, mas não encontrou solução definitiva até que sofreu um grave acidente: atravessou uma rua tão apressadamente que “atropelou” um ciclista.

A testa do jovem bateu na sua têmpora, ela caiu e bateu também a nuca no asfalto. Estava com 60 anos e, claramente, fora do seu ritmo, descompassada inclusive com o outro, não só o estranho da bicicleta como com a sua família que amava tanto.

Deste momento, podemos extrair duas lições, importantes. Uma delas, B.S. inteligentemente transformou em nova prática de vida:

A primeira é que nossa personagem, já “idosa” para os padrões da época, teria muito a compartilhar com os mais jovens, particularmente com as próprias filhas casadas e mães. As três, com idades diferentes, vivenciavam o tal triângulo das Bermudas onde a mãe se perdeu com 35 anos. Mas nenhuma filha consultou a mãe a respeito das suas inquietações e as reflexões de B.S. sobre esse conflito -- só constatado a partir da escrita biográfica -- não se concretizaram desta vez, ainda não. Cerca de três anos após o acidente da mãe, a filha mais nova teve o quarto filho e foi “traída” pelo marido, que se casou com outra. A esse respeito, declarou B.S.:

“Por fim, ela já não suportava mais sua vida porque – assim como eu – não prestava mais atenção ao seu próprio ritmo e às suas forças físicas, mas em compensação prestava atenção às das outras pessoas. Ela se afastou de tudo para ter clareza sobre si mesma: foi ´para o estrangeiro` (traduzindo, seguiu um novo homem e afastou-se dos filhos, conforme B.S. detalha ao final).”

A segunda refere-se à experiência de quase morte que B.S. teve quando ficou desacordada após a queda no asfalto, o que a levou à compreensão da urgência de mudanças. Buscou ajuda com a filha mais velha, muito mais habilitada, pela força da juventude, a lidar com a multiplicidade de tarefas que a mãe executava diariamente:

“Com a ajuda da minha filha mais velha e meu genro, pudemos (ela e o marido) retirar-nos dos problemas relacionados com a escola. Com suas forças novas, eles enfrentavam as dificuldades, tinham uma visão clara e encaravam os problemas de forma mais sóbria.”


A perda das palavras


Mas não há aqui final feliz, ainda não.

B.S. passou a lidar com o que chamou de “falta de palavras”. Não conseguia se expressar porque, simplesmente, não sabia o que estava sentindo ao certo, não sabia qual o sentido de tudo o que tinha feito e ainda fazia na vida.

Foi quando tomou uma iniciativa originalíssima, ofereceu um serviço terapêutico para pessoas que padecessem do mesmo mal que o seu.

Ocupou um espaço na associação beneficente que ela e seus irmãos haviam criado com o nome da mãe, logo após a sua morte. A instituição visava dar continuidade ao trabalho de cura que os pais haviam empreendido a vida toda por meio da antroposofia e da arte. Ali havia médicos e muitos pacientes beneficiando-se de novos métodos de cura por meio das artes. B.S. juntou-se a eles, conforme conta:

“Eu pude também retirar-me da responsabilidade parental em relação à escola – infelizmente sem palavras – e tentei ser, no terapeuticum, uma parceira de conversas para pessoas que sofriam de falta de palavras. Minha proposta era ´conversas de pessoa para pessoa´. Isso foi levado em conta, de forma grata, por pessoas que nos eram desconhecidas. Esses assuntos tinham tudo a ver comigo. Meu vício de incentivar (quase sempre) os interesses do meu marido ficou claro para mim.”

Ciente do “vício”, B.S. começa a cuidar de si, deixando o trabalho do qual não conseguia dar conta para outros, inclusive na sua casa:

“Eu precisava (...) renovar a mim mesma.”

Não se ausentou da própria vida, deu passos para recomeço, inclusive no casamento, no qual encontrou outro entendimento:

 

“Havia tempo para conversas mais calmas”.

Mas demorou até que pudesse verbalizar as transformações internas:

“Eu não encontrava palavras para minhas novas maneiras de ver, já desejadas interiormente por muito tempo.”


Descobertas


Graças à sensibilidade e coragem, B.S. viveu o envelhecimento na contramão do idoso convencional, que se abandona e se isola, por variados motivos. Sabia que estava enfrentando dificuldades (“Eu me sentia gasta”) e desafios (“A vida moderna passava ao nosso lado com grande velocidade”), mas nunca desistiu.

Abriu-se para o estudo, a reflexão e a arte, que é a verdadeira chave para a compreensão desta vida.

O conto de fadas de Goethe, “A serpente verde e a bela flor-de-lis”, revelou-lhe questões existenciais que a paralisaram em diversos momentos da vida. Outro livro, “O caminho do artista” (de J. Cameron), ensinou-a a lidar rotineiramente com o desânimo e a raiva. B.S. compartilha:

“Ali (no livro) são dadas grandes ajudas para o dia a dia – por exemplo, de manhã cedo descarregar as reclamações acumuladas, escrevendo-as por uns dez a vinte minutos, com sinceridade e sem rodeios, para depois colocar um ponto final total nelas. Depois começar, primeiramente durante duas horas por semana, a fortalecer o próprio polo vital (ou a criança interior), propondo-se a descobrir alguma coisa nova que você nunca realizou no cotidiano. Ambas as sugestões trouxeram-me um alívio e forças admiráveis.”

Paralelamente, B.S. mergulhou nas leituras e na volta às raízes da infância, quando aprendeu com o pai, médico, criativos caminhos para a cura física, mental e espiritual.

Esse resgate está ao alcance de todos, não só idosos.

Não é necessário ter fé, no sentido religioso, mas crença no poder de restauração que todos temos ao alcance das mãos e da boa vontade. Ao alcance, paradoxalmente, da disciplina e da liberdade de entrega às artes em todas as expressões, inclusive amorosa.

Nota da autora:

A biografia completa de B.S. está no livro “...Livres na terceira idade! Leis biográficas após os 63 anos”, de Gudrun Burkhard, Editora Antroposófica, 4ª edição revista e atualizada, São Paulo, 2011

*Christiane Brito é jornalista e escritora, especializada em memórias e estudos biográficos

Fonte: Vermelho, 1º de outubro de 2016




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