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A austeridade atinge os direitos humanos na América Latina

Em tempos de crise, países latinos cortam gastos sociais e comprometem a qualidade de vida dos mais pobres.

Por Grazielle David*

 

 



Diante de crises econômicas como a enfrentada atualmente por alguns países latino-americanos, há uma tendência de redução de receitas em decorrência do momento de turbulência. Neste contexto, quase sempre os governos optam por realizar cortes nas despesas públicas, especialmente nas sociais, com a justificativa de equilibrar as contas. Essa escolha, entretanto, traz sérias consequências para os cidadãos, em particular os mais pobres e vulneráveis.

Estudos realizados pelo Centro para Direitos Econômicos e Sociais (CESR, na sigla em inglês) sobre os efeitos das medidas de austeridade nos direitos em diversos países no pós-crise de 2008, demonstram que eles têm optado, em cenários de crise econômica, por realizar cortes orçamentários nos programas que promovem direitos humanos. Isso tem provocado um aumento expressivo das desigualdades e da pobreza.

No Brasil, a redução dos preços das commodities e a crise política ocasionaram a queda da receita do governo federal, levando a diversos cortes orçamentários a partir de 2015. Na educação, por exemplo, houve uma diminuição de 23,7% dos recursos discricionários – algo em torno de R$ 9,25 bilhões. Os principais programas afetados foram aqueles voltados para o ensino superior como o Fies (redução de 16%), Pronatec, Prouni e Ciências sem Fronteiras. Na saúde, um corte de 42,7% dos recursos discricionários (R$ 10 bilhões) atingiu principalmente o PAB (Piso da Atenção Básica) variável, os medicamentos, exames complexos, em cirurgias eletivas e vigilâncias (sanitária, epidemiológica e em saúde).

Com relação aos direitos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) teve em 2016 um corte de R$ 150 milhões (23%) em sua receita. Além da redução orçamentária, a entidade enfrenta um quadro de sucateamento, operando com 36% da capacidade de servidores. Neste ano, houve a extinção de 41 Coordenações Técnicas Locais (CTLs), ocupadas por indígenas. E ainda há a tramitação da PEC 215/00 no Congresso, que, se aprovada, acabará, na prática, com a política de demarcação de terras indígenas no Brasil.

A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial sofreu um corte de 56,3% dos recursos discricionários (ou seja, R$ 37 milhões), o que dificultará a coordenação e articulação de políticas afirmativas de promoção da igualdade racial no País, além das ações de Fomento ao Desenvolvimento Local para comunidades remanescentes de quilombos e outras comunidades tradicionais.

Para um grupo bastante vulnerável como o das comunidades tradicionais, houve um corte de 74% na ação que visa o reconhecimento e titulação de territórios quilombolas, passando de cerca de R$ 30 milhões em 2014 para míseros R$ 8 milhões em 2016. A Secretaria de Direitos Humanos teve um corte de 56,3% dos recursos, o que corresponde a R$ 170 milhões, restando apenas R$ 131,9 milhões, que serviria para executar ações de promoção e defesa dos direitos da pessoa com deficiência, de idosos, de crianças e adolescentes, entre outras que cabem ao órgão.

Atualmente, a maior ameaça aos direitos sociais dos brasileiros é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela e impede o crescimento real das despesas primárias do governo – em grande parte, os gastos sociais que promovem direitos – por 20 anos. Tal proposta ignora que a população brasileira crescerá 9% e dobrará o número de idosos em 20 anos, de acordo com as previsões do IBGE, o que por si, exigiria um aumento real do valor destinado para diversas políticas públicas. Entretanto, isso não ocorrerá.

Em valores reais, o mesmo montante de recursos aplicado em 2016 será aplicado em 2037, havendo apenas uma correção monetária. O resultado será uma aplicação per capita cada vez menor para a promoção de direitos, já que a demanda por serviços aumentará e o financiamento não, o que implicará em piora da oferta e da qualidade das políticas públicas para os brasileiros.

Mais grave ainda é a duração de 20 anos da proposta, explicitando que não trata-se de uma ação para lidar com uma crise econômica, mas uma atitude deliberada para mudar o Estado de Bem-Estar Social, preconizado na Constituição Federal, para um Estado Mínimo, que não garante direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais. É ainda desproporcional alterar um ADCT (atos de disposições constitucionais transitórias) para um período tão longo. Anularia-se, assim, toda a essência da Constituição Cidadã em um artigo transitório que sequer deveria existir já que a Carta Magna tem 28 anos.

O cenário não é muito mais promissor em outros países da América Latina. Na Colômbia, as receitas no país dependem consideravelmente da exportação de petróleo. Com o declínio do preço dessa commodity, houve uma redução significativa das receitas do país. Diante desse cenário, somado à desvalorização da moeda nacional, o governo realizou grandes cortes orçamentários em educação e programas de proteção social, como os de inclusão social e trabalho.

No México, a queda da arrecadação também em decorrência da desvalorização do petróleo (somado à redução da produção) ocasionou a paralisação de projetos-chave de infraestrutura, além de cortes em direitos e políticas públicas de desenvolvimento social. O resultado foi o aumento das desigualdades e a alta no número de mexicanos que vivem em situação de pobreza, atualmente em 46% da população do país.

Ainda que alguns países latinos precisem reduzir gastos em momentos de crise econômica, existem alternativas que preservam os direitos da população que podem e devem ser adotadas por governos. Por exemplo: lidar com a evasão fiscal, particularmente das grandes corporações e dos super-ricos. Isso poderia resultar em melhoria da eficiência da arrecadação dos país, sem prejudicar os direitos humanos. Também é possível aprimorar a estrutura do sistema tributário, tornando-o mais progressivo, reduzindo a carga tributária para os mais pobres e a classe média, ampliando-a para os mais ricos (que na América Latina quase não sentem o peso dessa carta tributária).

No Brasil, são sonegados cerca de R$ 450 bilhões anualmente. Há ainda uma Dívida Ativa da União que chega a incríveis R$ 1,5 trilhão. Deste total, R$ 252 bilhões já transitaram em julgado, ou seja, estão prontos para serem recolhidos aos cofres públicos. Em ambos os casos acima, bastaria uma decisão do Poder Executivo para que esses valores fossem melhor controlados, ao aprimorar a alocação de servidores e recursos na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por exemplo. Além disso, as desonerações tributárias crescem ano após ano. Em 2014, foram R$ 400 bilhões de isenções para determinadas atividades, sem que houvesse transparência sobre os motivos para a concessão do subsídio, nem de seus retornos sociais.

As políticas tributárias regressivas e o corte de programas sociais dos quais milhares de pessoas dependem para que tenham uma vida digna, resultam em discriminação por parte do governo de uma importante parcela vulnerável da sociedade. Cabe aos governos manter políticas de igualdade e não discriminação, em compromisso com a promoção de direitos humanos. Sendo assim, os países devem pensar em políticas fiscais que não reduzam direitos da população.

Responsabilidade fiscal não deve ser baseada em cortes de programas sociais, assim como a proteção dos direitos humanos não pode depender da situação econômica de um país. Em tempos de dificuldades, os governantes têm o dever de proteger seus cidadãos, especialmente os mais vulneráveis.

1.O efeito da austeridade nos direitos humanos foi tema de uma audiência pública realizada na Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH), em abril de 2016. No evento, foi destacada a importância das organizações da sociedade civil para manter seus governos responsáveis pela garantia e promoção dos direitos humanos, usualmente negligenciados em tempos de crise econômica. 

O evento foi organizado pelas seguintes entidades: Gaby Oré Aguilar e Nicholas Lusiani do Center for Economic and Social Rights(CESR), Red de Justicia Fiscal de América Latina y el Caribe; Oxfam International; Latin American Network on Debt, Development and Rights (Latindadd); Civil Association for Equality and Justice (ACIJ); International Budget Partnership (IBP); Grazielle David do Institute for Socioeconomic Studies (INESC); Foundation for the Advancement of Reforms and Opportunities (FARO); Mariana Gonzalez da Fundar, Centro de Análisis e Investigación (FUNDAR); Sergio Chaparro Dejusticia. Também participaram do evento: o secretário-executivo da CIDH Emilio Alvarez Icaza; os Commissionários da CIDH James Cavallaro e Paulo Vannuchi; Norma Colledani (Unidade DESC, CIDH); Ricardo Martner (ECLAC); Rodrigo Uprimny (UN CESCR); Magdalena Sepúlveda (ICRICT); Carmen Salcedo (Universidade de Valencia, Espanha).


*Grazielle David é assessora de políticas do INESC



Fonte: Vermelho, 06 de setembro de 2016


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