Uma das principais bandeiras do então presidente da República João Goulart (1919-1976), a reforma agrária esteve no centro do embate político que antecedeu o golpe de 1964. Pouco antes da queda de Jango, que deu início a 21 anos de ditadura militar, as expectativas de realização de uma ampla reforma agrária motivaram inúmeros debates entre os senadores.
“O único objetivo é desapropriar o latifúndio improdutivo”, argumentava no Plenário, no dia 4 de março, o então senador Arthur Virgílio (AM), líder do PTB, partido de Jango, tranquilizando os fazendeiros que estivessem trabalhando e produzindo. “Mas uma atitude que não encontrará meios de recuar é a de alcançar essas terras que não merecem respeito, que são esse latifúndio nocivo ao país, que é motivo de atraso à nação. O latifúndio antissocial, o latifúndio anti-humano”, afirmou.
A proposta de Jango estava ancorada em uma mudança constitucional que permitiria a desapropriação de terras com pagamento a longo prazo, na forma de títulos da dívida agrária. Mas deputados e senadores derrotaram o governo e mantiveram a norma segundo a qual as desapropriações para fins de reforma agrária seriam efetuadas mediante pagamento antecipado, em dinheiro. O que, na prática, inviabilizava um amplo programa de reforma agrária, dado o alto custo.
Em 1964, de acordo com o Anuário Estatístico Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população era de 79,8 milhões de pessoas. O número dos que viviam em área rural alcançava 33 milhões. A produção agrícola, porém, não chegava a atender plenamente ao mercado interno. O latifúndio fazia parte da paisagem na maior parte do país. A massa de trabalhadores rurais era mal remunerada e vivia situação de penúria. Nesse clima, crescia o clamor por reforma agrária.
As Ligas Camponesas, organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) após o governo Vargas, ganhavam corpo sob a liderança do pernambucano Francisco Julião (1915-1999), no fim dos anos 50 e no início dos anos 60. Julião foi eleito deputado em 1962. No outro lado do embate, estavam os grandes proprietários de terras, muitos dos quais eram parlamentares.
O comício na Central do Brasil
Na queda de braço com o Congresso, Jango buscou apoio popular, e no dia 13 de março de 1964, no "Comício das Reformas", na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, anunciou em discurso para 200 mil pessoas a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias, açudes públicos federais e as beneficiadas por obras de saneamento da União.
“Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra. Assinei-o com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos. Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido. Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro”, disse Jango, na Central do Brasil, em discurso transmitido pelo rádio. “O que se pretende é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável”, continuou.
No Congresso, o clima esquentou ainda mais. O comício foi encarado por parlamentares de oposição como sinal de que o governo decidira partir para o confronto.
“Se por trás do presidente da República estão elementos conturbadores, provocadores e agitadores, que pretendem levar o presidente da República à campanha de descrédito do Congresso, tudo isso excede os limites, atenta contra o regime, põe em risco o regime democrático, como se fosse um plano inclinado, no qual, após meio caminho, ninguém pode retornar”, discursou no dia 17 de março de 1964 o então senador João Agripino, da UDN da Paraíba.
“O presidente da República violou a Constituição federal. O presidente da República violou a lei”, bradou no dia 18 o senador Daniel Krieger, da UDN do Rio Grande do Sul, sob o argumento de que Jango fizera um comício em área não permitida pelo então governo da Guanabara. No dia 30 de março, outro udenista, o senador pelo Espírito Santo Eurico Rezende, chamava Jango de “carbonário”, por sua posição “no terreno da reforma agrária”. Para o parlamentar, tal comportamento afastaria João Goulart de seu patrono político, Getúlio Vargas (1882-1954), o qual seria favorável “a uma reformulação da nossa estrutura fundiária, mas sem alteração da Constituição de 1946”.
Do outro lado, o senador Arthur Virgílio usava toda sua verve para defender o presidente, a proposta do governo e o então deputado gaúcho Leonel Brizola (1922-2004), tachado pelos udenistas de “subversivo”. Arthur Virgílio acusava a UDN de pregar contra a democracia. Mas o caminho do golpe de Estado já estava delineado.
Fonte: Agência Senado, 26 de março de 2014
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